Do genoma ao controle

quinta-feira, abril 15, 2010

15/4/2010

Por Washington Castilhos

Agência FAPESP – Diferentemente de outras doenças transmitidas por insetos – como dengue, febre amarela e malária –, a doença de Chagas é contraída por meio do contato com as fezes do barbeiro, o que o torna único nesse tipo de infecção.

E é exatamente essa singularidade que poderá ajudar os cientistas na procura de alvos para o controle desse vetor e a entender melhor seus aspectos nocivos.


Pesquisadores iniciam identificação do transcriptoma do barbeiro para entender o que estimula a interação do vetor com o parasito causador da doença (montagem com fotos Fiocruz e Inserm)

Em 2009, depois de anunciado o sequenciamento do genoma do barbeiroRhodnius prolixus, pesquisadores reunidos em um consórcio internacional deram início à identificação dos transcriptomas (partes do genoma que codificam proteínas) do tubo digestivo do inseto. Foram analisados de 4 a 5 mil genes.

“Está sendo feita uma espécie de grande anatomia molecular da digestão dos insetos. O que descobrimos é aplicado como um catálogo esclarecedor da biologia do barbeiro”, disse Pedro Lagerblad de Oliveira, professor do Instituto de Bioquímica Médica (IBqM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos centros de pesquisa envolvidos no projeto.

A análise do transcriptoma poderá levar o grupo a explicar a interação entre o barbeiro e o Trypanosoma cruzi, parasito causador da doença, e ainda a entender o que ocorre dentro do aparelho digestivo do inseto, conhecimento fundamental para compreender sua eficiência como vetor do mal de Chagas. “O barbeiro tem uma microbiota intestinal que permite a interação entre ele e o protozoário”, explicou Lagerblad.

Sabe-se que o T.cruzi, em sua forma ainda não infectante, interage com o sistema de membranas que cobre o tubo digestivo do inseto e é lá que sofre modificação para uma forma infecciosa. Por conta disso é importante identificar proteínas com as quais o T. cruzi pode interagir.

“Sabemos que o genoma expresso no intestino é que gera um ambiente propício para essa diferenciação e a forma da infecção. O T. cruzi é um protozoário flagelado. Ele fica preso às membranas do tubo digestivo do barbeiro por um pedaço do flagelo (filamento). Então, as proteínas envolvidas nesta interação provavelmente se encontram nessas membranas”, aponta Lagerblad.

No entanto, se os cientistas já sabem que o parasito sofre uma mudança dentro do tubo digestivo do inseto, ainda é um mistério o que faz com que o protozoário se diferencie em uma forma infectante. Vários trabalhos in vitroapontam diferentes fatores que podem ser os responsáveis por promover essa diferenciação, como, por exemplo, a presença de ácido úrico no intestino posterior (reto) do barbeiro.

Mas um segundo ponto que interessa à equipe de pesquisadores do consórcio é saber se, identificados tais genes que propiciam a interação e diferenciação do parasito no intestino do vetor, uma interferência na função dessas proteínas pode interferir no mecanismo da infecção.

“Podemos inibir seletivamente a expressão de um gene e analisar as consequências para inferir a função do gene desconhecido. Para isso, se temos uma sequência de genes, podemos produzir uma molécula que vai se enrolar no RNA, suprimir a manifestação do gene e deixar de codificar a proteína, fazendo com que, por fim, ela deixe de aparecer”, disse o professor Walter Terra, do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, integrante do consórcio.

Segundo Terra, que coordena o Projeto Temático “A digestão nos insetos: uma abordagem molecular, celular, fisiológica e evolutiva”, apoiado pela FAPESP, cada tecido de um inseto tem aproximadamente 6 mil proteínas, apresentando um conjunto de proteínas que são comuns – a maioria delas – e algumas específicas.

“O problema é identificar as específicas. Elas sinalizam as diferenças, as propriedades características do tecido. Podemos encontrar proteínas que não se acham em outros lugares e que estão na superfície do tubo digestivo do barbeiro, e isso, para nós, é o mais interessante”, disse Terra.

Ele relata a existência no barbeiro de algumas proteínas que a equipe não esperava encontrar no inseto, como algumas que são típicas da lagarta. Uma das proteínas mais expressas no reto do barbeiro é muito similar a um gene marcador do câncer de bexiga.

“Encontramos também proteínas estranhas expressas em tecidos que se relacionam com tumores humanos e algumas enzimas típicas do interior de células. Algumas sabíamos que podiam correr por fora das células, mas não em um número tão grande como o que encontramos”, apontou.

“Uma possibilidade é que talvez o barbeiro tenha um leque de enzimas, o que faz com que, quando uma é inibida, outra seja expressa. Isso explica porque, em alguns casos, esperamos que o inseto vá ser afetado por um determinado inseticida e não é”, disse Terra.

Esforço internacional

A identificação do transcriptoma do barbeiro – que para os cientistas significa um guia de ferramentas para pesquisa – traz perspectivas para o controle do vetor, como a possibilidade de se pensar em inseticidas de nova geração ou em uma vacina contra a doença de Chagas.

“Se tivermos bastante informação sobre o barbeiro, poderemos imaginar uma vacina recombinante. Desenha-se uma proteína para injetar na pessoa, que gera um anticorpo e que, por sua vez, vai interagir com a proteína crítica do barbeiro”, indicou Terra.

Uma outra diferença entre a doença de Chagas e demais males transmitidos por insetos, apontam os pesquisadores, é que toda a vida do Trypanosoma cruzi está relacionada ao intestino do barbeiro. Já os agentes patógenos da malária e da dengue passam rápido pelo vetor.

O consórcio reúne pesquisadores do Brasil, Argentina, Uruguai, Canadá, Estados Unidos e Alemanha. A lista poderá ser ampliada em breve, já que grupos da França e da Inglaterra têm demonstrado interesse pelo projeto, coordenado em nível global pelo pesquisador canadense Erwin Huebner e financiado pelo National Institute of Health (NIH) dos Estados Unidos. No Brasil, a iniciativa também tem apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).